- HISTÓRICO
O nome “Quaresma” ou “Quadragésima” já vem atestado por volta de 384 por Jerônimo para a cidade de Roma, fazendo referência ao número simbólico de 40, que na Escritura é utilizado para exprimir um intervalo de tempo dedicado à penitência e a preparação diante de um evento salvífico ou à revelação de Deus. Por exemplo: os 40 dias do Dilúvio (Gn 7,4ss); os 40 anos de Israel transcorridos no deserto (cf Ex 16,35); os quarenta dias e quarenta noites em que Moisés permaneceu na montanha do Sinai para receber os mandamentos de Deus (Ex 24, 18); os quarenta dias e quarenta noites em que o profeta Elias caminhou até a montanha do Horeb, nutrindo-se de pão e água que um anjo de Deus lhe dava (1Rs 19, 8). É, aliás, com relação a estes fatos que, desde os tempos mais antigos, a Igreja sempre lê no segundo Domingo da Quaresma o Evangelho da Transfiguração, no qual, ao lado de Cristo e dos apóstolos, aparecem as duas figuras do Antigo Testamento, Moisés e Elias; e também Jonas também que pregou na cidade de Nínive que ainda restava um prazo de quarenta dias para o povo se converter a Deus (Jn 3, 4).
Contudo, o exemplo decisivo foi dado pelo próprio Jesus: antes de inaugurar seu ministério público, ele jejuou no deserto durante quarenta dias e quarenta noites; foi, em seguida, tentado pelo demônio e o venceu. Não é, pois, sem fundamento que a Igreja, conforme sua tradição, proclama este Evangelho no primeiro domingo das Quaresma (cf Mt 4, 1-11; Mc 1, 12-15; Lc 4, 1-13). Por isso, durante o tempo dos santos quarenta dias, a Igreja jejua com Jesus e por causa dele. É esta a diferença entre a Quaresma e o Advento, que não é propriamente um tempo de jejum.
A primeira menção de um período de 40 dias de jejum se encontra na carta de Atanásio de Alexandria no ano de 334, que diz o seguinte: “Nós não podemos subir a Jerusalém para comer a Páscoa (ceia pascal) se não tivermos observado os quarenta dias de jejum!” (cf 6a Carta Pascal; PG 26, 1389). Ao fim do século IV encontramos uma referência em Etéria relativamente a Jerusalém: “Chegando os dias da Páscoa, são assim celebrados: como, entre nós, se guardam os quarenta dias que precedem a Páscoa, respeitam-se aqui, oito semanas. Guardam-se oito semanas porque não se jejua aos sábados e domingos, exceto em um único sábado – o das vigílias pascais no qual se deve jejuar; além desse dia, portanto, absolutamente nunca se jejua aqui, aos sábados, o ano todo. Assim, pois, descontando das oito semanas os oito domingos e sete sábados – já que é necessário jejuar num sábado como acima referi – sobram quarenta e um dias nos quais se jejua, e que aqui se chama eortae, isto é, Quaresma”. (Peregrinação 27,1) e para Milão encontramos Ambrósio.
Entre fins do século IV e inícios do século V a Quaresma já era geralmente conhecida e segue junto à transformação da vigília do Sábado Santo na grande celebração batismal e a institucionalização do catecumenato. A partir do V século a reconciliação dos pecadores públicos se concentrou ao fim da Quaresma. Toda a comunidade se uniu a estes dois grupos: aquele dos catecúmenos àquele dos penitentes, de modo a prepararem-se para a Páscoa através da penitência, o jejum, as práticas religiosas e as celebrações litúrgicas.
Por volta do final do século IV a quaresma iniciava-se a partir da contagem dos dias de jejum, ou seja, no sexto domingo que antecede a Páscoa. A imposição das cinzas, já na Escritura, considerada sinal de penitência, deu o nome a quarta-feira, neste período ainda limitada aos penitentes públicos, cada vez mais raros com a difusão da confissão auricular. Ao fim do XI século a distribuição das cinzas é estendida a todos os fiéis, prática que será recebida pelo Missal de 1570. No Missal de 1970 essa prática é reformada de modo que a distribuição não aconteça antes da missa, mas sim após a Liturgia da Palavra.
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Sobre a Quarta-feira das Cinzas
Os fiéis que recebem as cinzas iniciam o tempo instituído para a sua purificação. Por este sinal de penitência, que vem já da tradição bíblica (cf 2Sm 13,19; Est 4,1; Jó 42,6; 1Mc 3,47; 4,39; Lm 2,10) e se tem mantido até nossos dias nos costumes da Igreja, é significada a condição do homem pecador; confessando exteriormente a sua culpa diante do Senhor, exprime assim a vontade de conversão, confiando em que o Senhor seja benigno e compassivo, para com ele, paciente e cheio de misericórdia. Por este mesmo sinal, enceta o caminho da conversão, cuja meta será atingida na celebração do sacramento da Penitência, nos dias anteriores à Páscoa (Cerimonial dos Bispos, 253).
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Até o ano de 1969, antes da quarta-feira das cinzas existia ainda a “pré-quaresma” com os seus domingos, que em base ao modo arredondado de contar os dias de jejum, vinham chamados Quinquagésima, Sexagésima e Septuagésima.
O tempo quaresmal propriamente dito findava-se com o Domingo dito Domenica in Passioni Domini. Tal cesura vinha destacada pelo cobrimento da cruz e das imagens presentes das igrejas (com alusão ao trecho de Jo 8,59b, do evangelho do domingo, interpretado de modo alegórico, que invoca o “véu do jejum” para o “jejum dos olhos”). Tal prática será oficializada no século XVII. Após a reforma, o Missal de 1970 estabelece que tal prática, de velar as imagens, pode-se manter se as conferências episcopais são favoráveis a ela.
Atualmente o tempo da Quaresma se inicia com a Quarta-feira das Cinzas e finda-se com a Missa da Ceia do Senhor na Quinta-feira Santa. Os domingos da Quaresma vem respectivamente chamados I, II, III, IV e V; o VI por sua vez é chamado Domingo dos Ramos e a Paixão do Senhor, com ele inicia-se a Semana Santa. O IV domingo da Quaresma é chamado Domingo Laetare, ou domingo da alegria, dada proximidade da festa da Páscoa. O Domingo dos Ramos, visa celebrar o mistério da entrada triunfal de Nosso Senhor em Jerusalém, sua cidade. Ainda na missa da quinta-feira pela manhã (em alguns casos, por motivos pastorais, na quarta-feira a noite) o bispo juntamente com seu clero celebra a Missa dos Santos Óleos (ou do Crisma), onde são abençoados os óleos dos catecúmenos e dos enfermos e consagrado o óleo do Crisma.
O que diz o Concílio Vaticano II (SC 109-110)
Ponham-se em maior realce, tanto na Liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo através da recordação ou preparação do Batismo e pela Penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:
- a) utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição [catecumenato, batismo no Sábado Santo, etc];
- b) o mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado [Campanha da Fraternidade], a natureza própria da penitência, que é detestação do pecado por ser ofensa de Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática penitencial, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores.
A penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis. Recomendem-na as autoridades a que se refere o art. 22 (sobre a regulamentação da liturgia por parte das autoridades competentes e instituídas para tal).
Mantenha-se religiosamente o jejum pascal, que se deve observar em toda a parte na Sexta-feira da Paixão e Morte do Senhor e, se oportuno, estender-se também ao Sábado santo, para que os fiéis possam chegar à alegria da Ressurreição do Senhor com elevação e largueza de espírito.
- ESPIRITUALIDADE
É um tempo forte de preparação para a celebração da Páscoa anual. Sendo assim o Tempo da Quaresma deve ser entendido a partir do Tríduo Pascal. Neste tempo toda Igreja é chamada a se deixar purificar e renovar por Cristo. Por meio do anúncio do Evangelho, é exortada a conversão e a renovação, como se pode perceber desde a celebração das Cinzas: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. O destaque nesse tempo é a preparação para o Batismo (processo de reforma da Iniciação Cristã) e o caráter penitencial.
Este tempo, não é resíduo arqueológico de práticas ascéticas de outros tempos, mas é o tempo de experiência mais viva da participação no mistério pascal de Cristo. “Participamos dos seus sofrimentos para participarmos da sua glória” (Rm 8,17). Daqui brota a compreensão do caráter sacramental da quaresma: tempo em que Cristo purifica a Igreja, sua esposa (cf Ef 5,25-27). O destaque, portanto, não cai primeiramente sobre as práticas penitenciais isoladas, mas sim na ação purificadora e santificadora da graça de Deus. As práticas penitenciais são sinal visível da participação no mistério de Cristo, que, por nossa causa, se faz penitente recorrendo ao jejum no deserto. As práticas penitencias devem encontrar sentido no mistério de Cristo.
Por aí é importante perceber o caráter batismal deste tempo. A Igreja é comunidade pascal porque é batismal. Isso deve ser afirmado não só no sentido de que nela entramos através do batismo, mas, sobretudo no sentido de que a Igreja é chamada a exprimir com vida de continua conversão o sacramento que a gera. Dentro desta perspectiva, a prática da penitência, que não deve ser somente interior e individual, mas também externa e comunitária, caracteriza-se pelos seguintes aspectos: a. abominação do pecado como ofensa a Deus; b. consequências sociais do pecado; c. parte da Igreja na ação penitencial; d. oração pelos pecadores. Os meios de resposta: a. maior escuta da Palavra de Deus; b. oração mais intensa e prolongada; c. o jejum (as quartas e sextas, e, sobretudo na quarta-feira de Cinzas e na Sexta-Feira da Paixão do Senhor estendendo-se ao Sábado Santo); d. as obras de caridade (às quais se associam as obras missionárias, cf CIC 1438).
- PRÁTICAS LITÚRGICAS DA QUARESMA
A cor litúrgica é o roxo e o rósea para o IV Domingo (Laetare). A cor marca o sentido de penitência e o caráter introspectivo do tempo. Cessa-se o Glória e o Aleluia, que, dado o caráter solene e festivo, retornarão na celebração da Páscoa. Nesse mesmo sentido os instrumentos musicais são moderados, ou seja, são usados apenas para sustentar o canto. Não se ornamenta o altar com flores (exceto no domingo Laetare – mesmo assim mantenha-se a moderação). Incentiva-se aos fiéis a participação na Paixão do Senhor através da celebração da Via-Sacra, preferencialmente as quartas e sextas-feiras.
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Sobre a prática do jejum
As regras atuais da Igreja para o jejum, bem como para a Quaresma podem ser encontradas nos cânones 1249 a 1253 do Código de Direito Canônico, conforme transcrito abaixo:
Cân. 1249 – Todos os fiéis, cada qual a seu modo, estão obrigados por lei divina a fazer penitência; mas, para que todos sejam unidos mediante certa observância comum da penitência, são prescritos dias penitenciais, em que os fiéis se dediquem de modo especial à oração, façam obras de piedade e caridade, renunciem a si mesmos, cumprindo ainda mais fielmente as próprias obrigações e observando principalmente o jejum e a abstinência, de acordo com os cânones seguintes.
Cân. 1250 – Os dias e tempos penitenciais, em toda a Igreja, são todas as sextas-feiras do ano e o tempo da Quaresma.
Cân. 1251 – Observe-se a abstinência de carne ou de outro alimento, segundo as prescrições da Conferência dos Bispos, em todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades; observem-se a abstinência e o jejum na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Cân. 1252 – Estão obrigados à lei da abstinência aqueles que tiverem completado catorze anos de idade; estão obrigados à lei do jejum todos os maiores de idade até os sessenta anos começados. Todavia, os pastores de almas e os pais cuidem que sejam formados para o genuíno sentido da penitência também os que não estão obrigados à lei do jejum e da abstinência, em razão da pouca idade.
Cân. 1253 – A Conferência dos Bispos pode determinar mais exatamente a observância do jejum e da abstinência, como também substituí-los total ou parcialmente, por outras formas de penitência, principalmente por obras de caridade e exercícios de piedade.